Folclore

Há já alguns anos que não assistia a festivais de folclore. No passado fim-de-semana decidi ir ver o festival de Alcobaça, organização do rancho folclórico da minha terra, os Molianos, não me foi fácil tal decisão. Os motivos para que assim fosse eram muitos, mas, o principal era ter prometido a mim mesmo não falar mais de grupos folclóricos, quando muito falar só de folclore. Mas, uma vez que arranjei coragem para ir ver, não podia deixar passar sem comentar parte daquilo a que assisti, digo parte, porque vou falar apenas do grupo da minha terra, e do que vi e não gostei.

Os grupos podem fazer nas suas atuações aquilo que os seus responsáveis entenderem, o que não devem é apresentar “coisas” como tendo sido deixadas pelos nossos antepassados, quando as mesmas nunca fizeram parte dos seus usos e costumes; é bom lembrar que quando falamos em nome de alguém que não nos deu permissão para o fazer, pode ser grave, mais grave ainda, é, quando já não estão connosco e como tal não se podem defender repondo a verdade.

Há algumas dezenas de anos, fiz parte de um grupo que efetuou um trabalho de pesquisa e recolha de tudo que tinha a ver com os usos e costumes, não só da nossa aldeia, mas também de algumas aldeias vizinhas, procurando saber como era a vida da nossa gente nos fins do século dezanove princípios do século vinte, foi também a pensar nessas pessoas, que me levou a escrever e publicar este artigo.

Foram muitas aquelas com quem falámos e, que de forma acolhedora e alegre sempre nos receberam; entre elas, destaco a ti´ Ana Angélica que nos cantou várias cantigas, o ti´ António Pavoeiro à data a viver em Caldas da Rainha, já com mais de noventa anos de idade, a sua irmã Maria Pavoeiro já próximo de fazer cem anos, o António Entrudo que tinha deixado a nossa aldeia há já muito tempo, tendo ir viver para Azoia de Leiria, onde fomos falar com ele, era o único que sabia a cantiga aos dezoito rapazes da nossa terra, que tinha sido notada por um senhor  de nome António Pereira, também nascido no último quartel do século dezanove, o acordeonista senhor João Pedro, que fazia muitos “balhos” na nossa terra, há data a viver em Lisboa, a Lucinda Fazendeira, a Emília Pereira, já velhinha, deitada na sua cama que se prontificou a falar connosco da sua vida, dizia ela, que muitas vezes andou a cortar mato com o marido na serra, descalça, quando sofriam um corte nos dedos a forma de tratar a ferida, era colocar a parte de fora de uma fava, depois de seca, sobre o golpe. Muitas outras  deram o seu contributo Ver aqui no trabalho então levado a cabo, por vezes aconteciam coisas caricatas vistas nos tempos de agora, mas era a única forma de conseguir de algumas a informação que procurávamos, recordo-me que quando recolhemos a moda serrana tivemos de ir para dentro de uma pocilga “vazia” fazer a gravação, porque a senhora não queria que as netas que estavam por perto a ouvissem cantar.

Seria quase impossível a esta distância no tempo, lembrar o nome de todos  que colaboraram connosco, não podemos no entanto esquecer essas pessoas nem aquilo que  nos disseram acerca da nossa terra e o seu modo de vida naquele tempo. Os nomes aqui lembrados são aqueles porque eram mais conhecidos.

Alguns dos pontos menos corretos que o grupo apresentou: 1º começo pelo fandango, dançava-se na nossa aldeia, normalmente por um par, homem e mulher e, não eram muitos os que se atreviam a tal,  entre os presentes eram quase sempre os que melhor  dançavam  a iniciar, as outras pessoas olhavam atentamente os dançadores, quando havia no balho mais rapazes que sabiam dançar o fandango, pediam àquele que estava a dançar para lhe dar o lugar, é pá dá aí uma bucha, a dança continuava sem paragens enquanto o homem ocupava o lugar do outro,  a rapariga normalmente não era substituída,  porque as outras que não dançavam assim tão bem,  não arriscavam a ficar mal vistas, como dizia a nossa gente naquele tempo. Não foi assim que o rancho o apresentou.

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Das senhoras que vemos na foto, a Maria Branca com noventa e um anos, e a Maria Rosa com oitenta e sete, não sabiam dançar o fandango, a Maria Rita agora com oitenta e cinco anos, era uma das que, na nossa aldeia, melhor o dançava.

2ºCantaram uma cantiga a que deram o nome de: cantar ao desafio entre um homem e uma mulher, com acompanhamento em jeito de coro por alguns componentes do grupo. É verdade que se cantava ao desafio na nossa aldeia, não só nos “balhos”, mas em qualquer sítio onde estivessem pessoas e o ambiente o permitisse, nas festas, nas tabernas aos domingos à tarde, nas matanças do porco, algumas vezes mesmo enquanto trabalhavam no campo. Mas o cantar ao desafio daquele tempo nada tinha ver com aquela maneira de cantar como eles o fizeram, acontecia de forma espontânea sempre que alguém iniciava a cantiga desafiando outro,  a resposta não demorava, podia ser entre dois homens ou duas mulheres, mas era sempre mais do agrado das pessoas quando acontecia entre um homem e uma mulher, os que estavam a ouvir apenas se manifestavam no fim da quadra quando um dos cantadores ou cantadeiras levava a melhor sobre o outro; a cantar ao desafio era possível dizer coisas que de outra forma naquele tempo não era permitido, talvez uma das razões para que  essa maneira de cantar fosse tão do agrado da nossa gente.

3º Enquanto o grupo dançava, um menino com um carro de costas, andou sempre junto aos dançadores, puro disparate, os meninos brincavam com o carro de costas, eu ainda brinquei, mas não na sala de “balho”, naquele caso se estivesse a um canto do palco brincando com outros meninos, aceitava-se, assim não, muitas outras coisas necessitavam de correção mas vou ficar por aqui.

Nunca é demais lembrar a muita gente que anda por aí dirigindo grupos que se intitulam de folclóricos, que se querem inovar, tem que recuar no tempo, ou então não digam que antigamente na sua aldeia era assim. Podem fazer o que muito bem entenderem, mas sem ofender a memória dos seus antepassados, dando espetáculo, recebendo aplausos que os deixa muito satisfeitos e, também aos políticos que em nome da defesa da cultura popular, os apoiam, a pensar nos votos que um dia lhe há – de dar muito jeito.

No que diz respeito ao grupo de Molianos, em poucos dias pode corrigir esses disparates, porque existe um trabalho de muitos anos que assim o permite. Mas andam por aí muitos chamados ranchos folclóricos, que em vez de folclóricos assentava-lhes melhor o nome, rancho de passeantes…

Molianos 17/07/2013

António EJ Ferreira


À conversa com três senhoras

Quando somos novos, salvo raras exceções todos ouvimos bem, só que,  muitas  vezes e por razões várias, não escutamos. Mais tarde,esta atitude contribui em larga medida, para que sejamos confrontados com situações, que em novos, não imaginaríamos ter de enfrentar. Assim sendo, seria bom que os mais jovens fizessem um esforçozinho e, procurassem escutar atentamente aquilo que os mais idosos têm para lhes dizer, isso não significa  fazer da mesma forma o que eles fizeram, os tempos são outros, mas sim, para conhecer como foi vivida parte da sua vida. É fundamental sabermos de onde vimos… isso muitas vezes ajuda-nos a ganhar coragem para enfrentar situações menos boas que ao longo da vida nos vão acontecendo. É  bom ter sempre presente, que mesmo com os conhecimentos que todos agora adquirem na escola, há algo que só com o tempo se consegue, a experiência.

DSCF1118As três senhoras que  vemos na foto, e com quem tive a felicidade de poder conversar, também  já foram jovens… a Maria Rosa que está de chapéu, oitenta e sete anos de idade, ao centro a Maria Angélica de Sousa, com oitenta e cinco, ao seu lado esquerdo a Maria Silvestre da Silva com noventa e um anos, todas falam do seu passado já distante,  como se tivesse acontecido ontem.

Quando crianças, nenhuma frequentou a escola, segundo os costumes da época, as meninas não necessitavam de ir à escola, isso era para os rapazes, mas poucos eram também os que a frequentavam com aproveitamento. Outra situação comum às três, foi só terem usado sapatos quando já tinham nove ou dez anos de idade e, também elas, como quase todas as meninas e meninos na nossa aldeia, o tempo que deveria ser para andar  na escola, entre outros trabalhos era passado a guardar o gado, as cabras e as ovelhas.

Também as três trabalharam no campo, não só nos Molianos onde naquela altura ganhavam dois escudos e cinquenta centavos por dia, quando havia trabalho, mas também fora da terra, nas quintas de Alcobaça,  nas vindimas na Quinta das Varandas (região do Cartaxo), e nos campos da periferia da cidade de Lisboa, onde o ordenado era melhor, ganhavam sete ou oito escudos por dia.

 Nesta foto  está a Maria Rosa, regressava a casa com o carro de mão (que a objectiva do azarado ” fotografo” não conseguiu captar), tinha ido ao contentor levar cartão para ser reciclado, bom exemplo para os mais novos, com os seus oitenta e sete anos faz aquilo que alguns jovens não fazem a bem do ambiente, para que no futuro ainda seja possível viver com alguma qualidade.DSCF1116

Outra situação comum, foi acompanhar familiares quando estes  iam para as vindimas, uns para a região do Cadaval e outros para a zona do Bombarral. O acompanhamento por elas feito aos familiares, tinha por objetivo ajudar a transportar as coisas que eles levavam, não eram muitas, alguns géneros alimentares e alguma muda de roupa, para comerem e usarem respetivamente durante a campanha das vindimas, mas a distância era grande para quem como eles fazia a viajem a pé. O acompanhamento era feito até ao Cercal, já no Concelho do Cadaval. Ao chegarem aí, elas voltavam para casa com os burros que serviram para transportar as cargas e, serem o transporte delas no regresso a casa. Para eles o resto da viagem, até ao local de trabalho, mais alguns quilómetros,  continuavam a pé, mas agora caminhavam carregando com os seus pertences. A distância entre a nossa terra e o Cercal era de aproximadamente quarenta quilómetros.

Algumas das maiores dificuldades  por que elas passaram, para além do muito trabalho com pouca recompensa, falam da falta de água que se fazia sentir nos Molianos, agravada em anos que a chuva teimava em não cair e, todos os locais que armazenavam o precioso liquido secavam. Por volta do ano quarenta do século passado, foi tal a seca que a Câmara Municipal de Alcobaça disponibilizou uma viatura durante algum tempo para o transporte de água, que depois era distribuída pela população, ainda que, em quantidade reduzida para as necessidades. Outra situação difícil porque muitas mulheres passavam, tinha a ver com os partos difíceis que não raramente aconteciam, quando as parteiras da aldeia não conseguiam resolver, tinham que mandar vir o médico, vinha de Turquel o Dr. Guerra, no início também ele se deslocava a pé, até à nossa terra. Para além do risco que as parturientes e bebé corriam, na maioria dos casos, o casal não tinha dinheiro que chegasse para pagar ao médico, tinham que recorrer a ajuda de vizinhos o que não era nada fácil, pois a esmagadora maioria mesmo que quisesse ajudar, não podia…

Apesar de muito tempo já ter passado, ainda não esqueceram as dificuldades acrescidas porque passaram no tempo da segunda grande guerra, em que a venda de todos os bens alimentares obedecia a racionamento.

Aos doze ou treze anos, todas já tinham saído da terra para trabalhar, mas só quando já tinham mais de vinte foram a primeira vez  à praia da Nazaré. Algumas vezes ouvimos falar nos bailes de antigamente, “ou balhos” como no tempo delas diziam, mas também aí as coisas não eram fáceis, havia muitas  raparigas na aldeia, mas poucas vezes eram autorizadas pelos pais a ir, a não ser em situações especiais, nunca se encontravam no baile mais de quatro ou cinco raparigas, razão pela qual, os rapazes só de duas ou de três em três modas eram autorizados a dançar.

Durante o tempo que estive à conversa com elas, veio-me ao pensamento a frase( cujo autor desconheço) que diz, que só começamos a amadurecer quando rimos  daquilo que já nos fez chorar. Por várias vezes elas riam quando recordavam acontecimentos, que à data seriam arrepiantes, como, a de algumas meninas que deixavam cair o cesto que levavam cheio de uvas à cabeça, porque o peso era demasiado para a sua idade, assim como muitas outras situações Ver aqui que elas recordaram.

Este texto relata apenas uma pequena parte da agradável conversa que tive com a Maria Rita, a Maria Branca e a Maria Rosa, estes os nomes pelos quais são mais conhecidas na aldeia.  Às três, os meus agradecimentos pela oportunidade que me deram de viajar no tempo, e ficar a conhecer um pouquinho melhor como era a vida das pessoas da minha terra.

António EJ Ferreira


Há sonhos assim!

Certa noite acordei sobressaltado, tinha estado a sonhar que ouvi o lagar do Barreirão, muito triste, a falar de si…

Depois de acalmar daquele pesadelo, tentei reconstruir o que em sonho tinha ouvido…

Então o que o lagar dizia era assim. Quando era novo, fui o orgulho desta terra, fiz a felicidade de muitos, fui espaço de trabalho de confraternização e de tantos momentos de alegria entre o povo, sobretudo quando a safra era boa.

Era altaneiro e elegante para a época, rodeado de altos muros, bem construídos, sempre bem caiados com barras de cor diferente que me faziam ainda mais bonito  não faltavam as floreiras, onde entre outras flores sobressaiam as sardinheiras. A casa no primeiro andar era tipo senhorial, onde hoje já não posso ir, o soalho está podre e cheio de buracos, e eu já velhinho, posso cair para o armazém que se situa por baixo,  depois ninguém me vai acudir.

Já lá vão uns bons anos anda por aqui uma rapaziada que me deixaram cair no esquecimento, gostam muito de passear  mas eu tenho dúvidas… que eles saibam porque passeiam. Há uns tempos atrás quando o motor ainda trabalhava, era como se o passado chegasse até aos dias de hoje. Mas o motor já não trabalha! A caldeira onde o povo se juntava quando fazia frio, e enquanto a sua medura era feita, já não está lá, apodreceu e caiu.

O que era o poço de água é agora uma fossa. Tem sido muito o frio porque tenho passado sempre que chega o inverno, pois há já muito tempo que algumas janelas tem os vidros partidos. Quem diria! Que eu chegava ao estado lamentável em que me encontro.

O que aconteceria aos meus contemporâneos se por cá aparecessem agora e vissem alguns homens e mulheres que por aqui andam formando um grupo que diz ser para preservar os seus usos e costumes, assim como o legado por eles deixado. Provavelmente voltariam a morrer de novo, só que agora de desgosto por serem tão mal tratados por quem se arvora Ver aqui em seu defensor… Povo da minha terra digam a esta gente que pensem bem no que me andam a fazer, por favor não me agridam mais, pois a continuar assim,  em breve irei cair e jamais alguém me levantará.

Com muita angústia, o Lagar do Barreirão…

António EJ Ferreira


Festas populares e religiosas nos Molianos

No passado, tinham lugar nos Molianos três festas, onde o religioso e o popular se misturavam e faziam a alegria do povo, momentos que eram vividos com muita satisfação pelas pessoas da aldeia. Eram elas, a Senhora da Conceição, o Santo António e a Senhora da Piedade, as duas primeiras, há já muito tempo que deixaram de se realizar, só a Senhora da Piedade vai resistindo, ainda que, pouco tenha a ver com a de antigamente, não só na parte mais popular, mas também na parte religiosa sofreu grandes mudanças, o que é normal, atendendo às alterações que tem acontecido nas últimas décadas.

Este texto, ainda que, com algumas limitações consequências da distância no tempo, procura dar a conhecer aos mais novos, como era a festa da Senhora da Piedade nos fins da década de quarenta e início da de cinquenta do século passado, acontecimento que era vivido por todos, novos e menos novos, de uma forma muito especial. Não só pela festa em si, mas por tudo que ela representava naquele tempo, em que as pessoas só saiam da terra para irem trabalhar. E os mais novos, só quando tinham treze ou catorze anos é que iam também com os mais velhos, particularmente para as vindimas e, só por isso começavam a sair da terra. Daí que, tudo o que acontecia na aldeia era vivido com grande intensidade. Era por essa altura que muitas pessoas que tinham deixado a terra para trabalhar noutros sítios, normalmente em Lisboa, voltavam para em conjunto com familiares e amigos viverem um dia de festa e, pelo menos naquele dia, esquecerem coisas menos boas da vida. Era também por altura da festa que alguns (mas poucos) estreavam pela primeira vez um fato novo, que teria de durar para vários anos, sem que voltassem a ter mais algum. Era verão quando acontecia a festa, mas os fatos eram usados no verão e no inverno, razão pela qual o tecido com que eram confecionados era sempre a pensar no tempo frio… Se nos tempos de agora, as pessoas se preocupam muito com o fato, antigamente não era assim, não havia dinheiro, com um fato melhor ou não, o que todos gostavam mesmo, novos e menos novos era de ir à festa.

O dia da festa era só no domingo, o sábado antes, era para a comissão com a ajuda de mais algumas pessoas organizar o arraial e ornamentar a acapela, e as meninas da quermesse organizarem o seu trabalho que não era nada fácil, atendendo à limitação de espaço, o armazém das prendas era num anexo que ficava junto à sacristia, a escolha e numeração das mesmas era feita no coro da capela, local que em condições normais era ocupado pelos homens durante a missa dominical, cabendo às pessoas por onde passava a procissão, fazer e colocar alguns arcos enfeitados com papel ou apenas com verdura “murta ”pelo menos dois, um à saída da capela e o outro junto ao Senhor Bom Jesus até onde chegava a procissão.

O domingo, era sempre muito preenchido, começava pela manhã com o deitar de foguetes e morteiros anunciando as festividades, pois naquele tempo, festa sem foguetes não era festa… depois era chegado o momento do juiz que agora terminava o seu ano de mandato acompanhado por alguns festeiros e pela banda filarmónica, irem buscar o novo juiz que o ia substituir.  O cargo de Juiz como responsável máximo da comissão da capela, tinha a duração de um ano findo o qual era substituído (isto em condições normais…), com eles ia sempre o fogueteiro e um ajudante que levava o molho de foguetes que iam deitando ao longo do trajeto, anunciando assim a sua passagem em direção às casas das pessoas que iam buscar. Também a juíza daquele ano, apesar, da sua missão começar e terminar naquele dia, vinha de casa até à festa acompanhada pela banda, normalmente trazendo à cabeça a sua oferta (fogaça como então se dizia), se ela morasse próximo do novo juiz vinham juntos. Mas havia anos em que o local onde moravam era em sítios opostos o que fazia com que os músicos, o Juiz e demais acompanhantes tivessem de fazer vários quilómetros, sempre a pé, “naquele tempo não havia transporte, menos ainda para tanta gente.” Depois faziam o trajeto no sentido inverso, voltando ao local da festa agora acompanhados dos “magistrados” e, dos rapazes e raparigas que em alguns anos transportavam os andores de bolos que tinham sido oferecidos em cumprimento de promessas feitas a Nossa Senhora.

Quando chegavam ao local da festa já a manhã ia avançada, e aproximava-se a hora da missa, cerca da uma da tarde sempre muito concorrida, algumas vezes, as pessoas não cabiam na capela. Terminada a missa em que participavam vários sacerdotes (normalmente três), iniciava-se a procissão em direção ao termo de Évora, onde normalmente seguiam todos os sacerdotes, até ao Nicho, ou ao Senhor Bom Jesus como o povo lhe chamava, e continua a chamar ainda hoje, não com o mesmo sentimento de outros tempos, em que muitas pessoas quando por ali passavam, olhavam e benziam-se e, alguns homens tiravam o boné ou barrete em sinal de respeito e devoção pelas imagens ali expostas. Na procissão ia sempre muita gente, todas as imagens que se encontravam na capela seguiam em andores próprios, assim como os andores de bolos, e muitas senhoras com ofertas que transportavam à cabeça, normalmente, galinhas, coelhos, azeite e outros produtos da terra, milho ou trigo, cumprindo assim promessas feitas ao longo do ano, não raramente em momentos difíceis na vida. Eram também muitas as crianças normalmente vestidas com um fato branco comprido, a quem chamavam anjinhos, a sua presença tinha a ver com promessas feitas pelos pais quando na vida alguma coisa já estava, ou podia vir a correr menos bem. Também a filarmónica voltava a fazer mais uma caminhada desta vez integrada na procissão, onde de vez em quando tocavam músicas adequadas ao momento, assim como o fogueteiro e o ajudante que seguiam na frente e iam deitando fogo ao longo do percurso.

No regresso ao local da festa eram muitas as pessoas que aproveitavam para vir na procissão e trazer o farnel para ser comido no arraial, ou, nos terrenos particulares que ficavam junto à capela, à sombra das muitas oliveiras que por ali existiam. Terminada a procissão, procedia-se à entrega da bandeira ao novo Juiz que assim iniciava o seu mandato, ritual que era feito junto à porta principal da capela onde tinha lugar um pequeno discurso de circunstância que servia sobretudo, para fazer agradecimentos aqueles que tinham colaborado ao longo do ano. Era também o dia em que muitas pessoas da aldeia que viviam e trabalhavam na zona de Lisboa, aproveitavam para vir à terra e assim terem oportunidade de conviver com familiares e amigos, alguns que há já muito tempo não se viam, na aldeia, só não ia à festa os que andavam de luto, ou aqueles a quem a falta de saúde já não lhes permitia. Era bonito de ver, o gosto que as pessoas tinham que os amigos comessem alguma coisa do seu farnel, e estes não se faziam rogados, não importava o que cada um tinha para dar a comer, podia ser o coelho, a galinha, os ovos cozidos, os queijos, o bacalhau albardado entre outras coisas, o vinho quase todos levavam de casa, os que não levavam compravam nas tabernas improvisadas no espaço da festa, alguns retribuindo assim o favor que os taberneiros faziam guardando-lhe o farnel enquanto durava a parte religiosa da festa que terminava depois da entrega da bandeira. Só depois era chegada a altura de todos irem comer, (as tabernas naquele não pertencia à organização da festa). Era também a partir dessa altura que andavam pelo arraial alguns rapazes a vender fogaças que tinham sido oferecidas, sobretudo as que eram compostas de comida, passavam várias vezes junto das pessoas a ver quem mais oferecia, quando lhes parecia que não havia mais interessados iam entregar a quem tinha oferecido o valor mais alto. Naquele tempo, as receitas recolhidas na festa que revertiam a favor da capela, eram apenas as que resultavam da venda das fogaças, da quermesse e do peditório que era feito no arraial.

Presença habitual naquele tempo, era a de dois elementos da GNR, que tinham como missão zelar pela “ordem” durante todo o dia, algumas vezes eram improvisadas celas, onde eram instalados à força, os menos bem comportados, estas eram numa pequena casa de recolha de utensílios ou produtos do campo que se situava no terreno junto ao arraial e outra num espaço próximo do lagar de azeite que ficava do lado do sul do adro da capela.

Durante a tarde a banda filarmónica tocava no coreto e, as pessoas aproveitavam para dançar, mas alguns anos parecia haver diretrizes para que isso não fosse permitido… por vezes, os elementos da GNR intervinham e as coisas complicavam-se, mas nada que ao cair da noite não ficasse resolvido. Algumas vezes acontecia, que ao chegar ao fim do dia em que tinha feito muito calor… os agentes em serviço já não sabiam muito bem para que lado ficava Alcobaça…

Ao cair da noite era o regresso a casa (naquele tempo não havia luz elétrica), a maioria deixava transparecer a alegria que lhe ia na alma, depois de um dia intensamente vivido em verdadeira confraternização, alguns ainda que o sem o manifestarem, regressavam a casa já com o pensamento na festa do próximo ano.

Algumas curiosidades relacionadas com a festa: o coreto que um pouco antes talvez em fins da década de quarenta era construído em madeira, certo dia enquanto a banda tocava, a estrutura quebrou-se e alguns músicos e instrumentos caíram por terra.

Houve um ano em que o Juiz não foi substituído, existiam dívidas e enquanto as mesmas não foram saldadas ele continuou a ocupar o lugar, segundo consta por falta de interessados para o substituir.

Em cada ano a festa tinha uma Juíza, que era a mesma que no ano anterior tinha sido a ajudante, em que a diferença era, no ano de ajudante a oferta normalmente era menos valiosa.

Por aquele tempo era grande a rivalidade das pessoas que residiam nas várias regiões que tinham como centro aglutinador a capela. Durante a procissão, seguiam alguns elementos vestindo uma capa branca levando na mão um bastão, estes tinham como missão “coordenar” a procissão, houve um ano em que dois seguiam próximo um do outro, ao passar no local onde se encontram as duas freguesias, um deles disse para o outro, vamos a entrar na Rússia, este sorriu mas não deu resposta.

Houve um homem que prometeu, se a mãe que estava muito doente melhorasse, fazer todo o trajeto da procissão debaixo do andor de Nossa Senhora da piedade, a mãe melhorou, e ele cumpriu a promessa, ainda foi convidado pelo sacerdote a não o fazer dada a grande dificuldade que iria ter, mas ele insistiu e cumpriu mesmo. Dizem aqueles que assistiram, que foi muito difícil pois teve de fazer o trajeto sempre agachado. O cumpridor já falecido, foi o senhor Francisco Fonseca, ou (Chico da Moda) como era mais conhecido.

O dia da festa foi para muitos, durante alguns anos, o único em que bebiam imperial, para a maioria foi mesmo a primeira vez. Pois naquele dia o dono de uma cervejaria famosa de Alcobaça, montava uma tenda no local onde cabiam várias dezenas de pessoas e aí vendia a famosa imperial.

A rivalidade naquele tempo era tanta que havia pessoas que chegavam a contar os foguetes e morteiros que eram deitados, para saber de qual lado da freguesia deitavam mais. Essa rivalidade começou a ser minimizada, ainda que muito lentamente, com a vinda para a freguesia de prazeres de Aljubarrota do senhor prior Boaventura, (espero falar sobre esse assunto num trabalho próximo).

António EJ Ferreira


Quando se ouviam os galos cantar

Na aldeia de Molianos, no passado ainda não muito distante, era um sítio onde o silêncio era uma constante, ao ponto de qualquer barulho menos normal que acontecia era logo ouvido a uma grande distância, o que levava todas as pessoas a procurar saber o que teria acontecido.  Assim, quando se ouvia chorar em altos gritos era sinal que alguém tinha falecido, como naquele tempo não havia telefones ou outros meios de comunicação, a notícia era levada a outros familiares por alguem que ia chorando pelo caminho. Também no início das guerras coloniais sempre que algum militar era mobilizado e a notícia chegava á família, havia choro, lamentando a ida de um dos seus para a guerra. Mas os barulhos que se ouviam na aldeia nem sempre era sinal de desgraça ou coisa parecida. No tempo da apanha da azeitona a caminho do olival ou no regresso a casa, ranchos de homens e mulheres faziam grande algazarra exteriorizando a alegria que lhe ia na alma, ou camuflando o tempo menos bom porque alguns estariam a passar

Pela altura do entrudo, “cerca de um mês antes, ” começava o barulho próprio da época anunciando que a terça feira mágica se aproximava. Esse anúncio chegava com cantigas ao desafio, e com o ditar das pulhas, o que permitia dizer coisas que fora dessa época não eram bem aceites… um ditava a pulha, e o grupo acompanhava separando as frases dizendo em voz alta, vivou!!!

São ainda alguns os que se recordam de ouvir o zurrar do burro do ti`Pinto quando este andava a trabalhar lá para o sítio das covadas. Ou ouvir a voz do mandador aquando do plantio das muitas vinhas que ainda há poucos anos existiam na aldeia, alguns  cavadores ainda não esqueceram o que mais gostavam de ouvir ao mandador, alto e assenta a espada, todos ferravam a enxada e, esperavam que alguém lhe trouxesse  a pinga, depois de terem bebido, à ordem do mandador voltavam a cavar.

Outro dos sons que se ouvia muitas vezes e todos reconheciam era o da corneta da senhora Emília Peralta, com que chamava o marido ou outros familiares quando estes não estavam por perto. Em todas as casas, era possível escutar o cantar dos galos anunciando o amanhecer de um novo dia, era o “despertador” daquele tempo. Se pela manhã todos gostavam de o ouvir cantar, se ele cantava à tarde muitas pessoas não gostavam, diziam que esse  cantar trazia agoiro… Também se podia ouvir e distinguir o cantar  das muitas variedades de pássaros que cantavam durante o dia cada um à sua maneira.  O sino que existia na torre da capela, “apesar de pequeno” fazia-se ouvir em toda a aldeia, chamando as pessoas para a missa, ou anunciando que alguém tinha falecido.

Nos dias de hoje, esses sons que faziam parte da vida das pessoas deixaram de se ouvir, abafados ou destruídos por outros que o progresso se encarregou de trazer. E, aqueles que se vão ouvindo, facilmente passam despercebidos, pela indiferença com que as pessoas passaram a encarar o espaço que as rodeia. A ausência de solidariedade entre vizinhos, passou a ser normal, “antigamente não era,”  então porquê preocupar-se com barulho estranho que possa estar a ouvir?…

AEJF


As tabernas nos Molianos em meados do século passado

Em meados do século passado, eram as tabernas, os locais onde os homens se juntavam ao domingo, ou quando o trabalho era pouco, ou ainda nos dias de inverno quando não podiam trabalhar no campo. Onde para além de beberem uns copitos do tinto, do branco, o pirolito, o bagaço ou  a genebra,  (para beberem o vinho por vezes nem necessitavam de copo, bebiam a olho), era também o local onde se vendia: o açúcar, o café (para fazer na cafeteira), a massa, o arroz, o petróleo ou o sebo para as botas, entre muitas outras coisas, eram uma espécie de “shopping” da época nos Molianos, como em quase todas as aldeias!

Naquele tempo as senhoras não frequentavam as tabernas, a não ser, para fazer as compras de que necessitavam, ou as que podiam … diziam os homens que as taberna não eram para as mulheres. Mas não se pense que algumas sem estarem na taberna, de vez em quando não apanhavam também a sua piela, de tal tamanho, que as fazia ziguezaguear não conseguindo passar despercebidas junto das pessoas com quem se cruzavam.

Eram muitas as tabernas naquele tempo, impensável nos dias de hoje, mas era mesmo assim, chegaram a estar em atividade ao mesmo tempo nove na aldeia. Por aquela altura não existiam coletividades ou outros espaços públicos a não ser as tabernas.  As pessoas não saiam da terra, não havia transportes particulares a não ser a bicicleta, mas havia poucas, (os dedos de uma mão chegavam para as contar e ainda sobravam dedos…), ou então os burros.

À segunda feira havia transportes públicos mas apenas para Alcobaça, era dia de mercado onde as pessoas iam vender algumas coisa que tinham, para poder comprar outras que necessitavam, algumas o peixe e pouco mais. Mas mesmo assim eram muitas as que iam e vinham a pé  ou, utilizavam os jumentos para poupar o dinheiro do transporte. Razão pela qual as tabernas eram frequentadas por muitas pessoas neste caso só homens, a não ser no tempo em que quase todos saiam da terra para trabalhar para outros sítios e, os mais frequentes era no tempo das vindimas para a região saloia, outras vezes para os campos na periferia de Lisboa e, alguns para vender leite na cidade. Os fregueses das tabernas por essa altura eram poucos.

Quando a maioria regressava à terra as pessoas eram em grande numero, aos domingos à tarde enchiam as tabernas, onde para além de muita conversa por vezes surgiam os poetas populares  e cantava-se ao desafio o que era sempre do agrado de todos, mas quando era já o álcool quem mais ordenava, por dá cá aquela palha aconteciam grandes senas de pancadaria, nada que passados alguns dias os contendores, por iniciativa própria ou com a ajuda de alguém não resolvessem fazendo as pazes, chegando a acontecer alguns ficarem mesmo amigos.

As tabernas para além do já referido, naquele tempo desempenhavam também uma “função social” não davam nada a ninguém, mas tornavam possível a algumas pessoas levar para casa alguns bens alimentares essenciais para o dia a-dia da família, quase sempre numerosa, levavam fiado com a promessa de vir pagar assim que tivessem dinheiro. Se assim não fosse, não podiam comprar e as dificuldades para sustentar a família seriam ainda maiores.

António Ej Ferreira