Quando o tudo não vale nada

Quantas vezes vemos alguém enquanto mais novos, e alguns mesmo já idosos, a trabalhar sem ter tempo para observar atentamente o mundo que os rodeia… Não ter tempo para a família. Não ter tempo para os amigos ou para aqueles que necessitam da sua ajuda. Não ter tempo para escutar, a maioria das vezes limita-se a ouvir… Não raramente, em vez de ver, apenas olha.
O Pior é que com tal comportamento pensa que está a fazer o melhor para si e para os seus e quando vê que afinal está errado é tarde demais! Mas mesmo assim há sempre um tempo em que é possível mudar, jamais chegará onde poderia ter chegado, mas entre o tudo e o nada há que aproveitar o que ainda for possível.
Por isso, mesmo que ainda possa andar depressa, procure não andar com pressa. Procure observar calmamente o ambiente que o rodeia e não apenas olhar. Escute, mesmo que lhe pareça não merecer a pena, porque merece sempre se mais não for permite-nos reconhecer melhor e valorizar aqueles que sabem o que dizem e que gostamos de ouvir, ainda que sejam muitas as vezes que já não temos oportunidade de lhes dizer como gostaríamos…
Ao longo da vida muitos de nós somos confrontados com situações assim em que chegamos à conclusão que o tudo pode não valer nada… Não raramente, é a partir daí que descobrimos o caminho que devíamos ter percorrido mas como o passado já não volta há que o arrumar o melhor possível e procurar um novo rumo. Parar isso nunca!
António E.J Ferreira

 


Quando o sol escurece…

O tempo! o tempo passa depressa, e o que ontem era lindo hoje pode não ser…A vida, por vezes, leva-nos para sítios onde nunca imaginámos que tal pudesse acontecer, mas acontece. Não raramente torna-se necessário fazer mudanças radicais no nosso comportamento para procurar um novo equilíbrio. Para tal, é preciso: primeiro, arrumar bem o passado e não lamentar nada do que fez. Aquilo que poderia ter feito e não fez, esqueça!

Procure para companhia alguém com pensamento positivo, tente não se deixar subjugar por vícios, pois, não raramente, são a causa maior de uma derrota que tantas vezes sem eles seria possível minimizar ou mesmo evitar. Procure escutar pessoas que sabem daquilo que falam. Evite aqueles que sabem tudo… e quando algo corre mal a culpa é sempre dos outros.

Escolha coisas que o ajudem, e essas por estranho que pareça, muitas vezes podem ser encontradas nas grandes dificuldades porque passou. Se as ultrapassou, também as que possa estar a viver agora podem ser ultrapassadas … não se dê nunca por vencido. Lembre-se que depois de cair no fundo de um poço não se pode descer mais… mas voltar ao cimo pode ser possível! Se assim não fizer fica preso a um tempo, que no seu tempo, jamais voltará.

António EJ Ferreira

 

 

 


Poemas da clementina

 

mariaNa minha aldeia ainda há pessoas a quem em criança não foi possível ir à escola, mas como para ser poeta ou poetisa não basta que isso aconteça, mas sim quem nasceu com essa qualidade. Foi o que aconteceu com a Clementina Sousa, ainda muito nova passou o tempo que seria de idade escolar trabalhando como criada de servir, depois ajudando os pais  no campo e em outros serviços e, a escola como não era obrigatório não a frequentou. Só uns anos mais tarde teve algum tempo para ver os trabalhos que os irmãos mais novos que já frequentaram a escola traziam para fazer em casa, foi assim que aprendeu e quando a disponibilidade tornou possível começou a fazer aquilo que tanto gosta, escrever poemas o que faz com relativa facilidade…

Há dias sabendo que eu gosto destas coisas… quis que eu visse algum do seu trabalho, li e gostei, por isso me prontifiquei a publicar no meu blogue alguns dos vários poemas que ela tem. É a primeira vez que publico trabalhos que não são meus, mas quando gosto daquilo que as pessoas fazem ou dizem e tenho oportunidade não passo sem lhe dizer que gosto… neste caso não só lhe disse como me disponibilizei para publicar, o que ela logo aceitou.

No ano de 2007 aconteceu nos Molianos um encontro de poetas populares, foi por essa altura que a Clementina já avó de onze netos quis dar a conhecer de que era capaz, concorreu e a menina que nunca foi à escola ganhou o primeiro prémio então com o pseudónimo de Rosa Carolina, até esse dia, poucos sabiam das suas qualidades poéticas.

 O Pensamento

Hoje quero falar um pouco de mim,

Quero falar do pensamento

Que vagueia mais que o vento e nunca sabe onde vai,

Ele anda tão depressa,

Tem vezes que tropeça e tenta equilibrar-se para ver se não cai.

O pensamento fala alto e fala baixinho,

Diz- me coisas boas e coisas más,

E tem vezes que me ensina o caminho.

O pensamento é constante,

Desvanece num instante e faz-me mudar de sentido,

Há dias, em que de repente ele põe-se à minha frente

E faz-me traçar num novo objetivo.

Estarei certa ou errada, com isso não me importa,

 No silencio da noite,

Há uma subtileza no vento que fico sem saber se é gente,

Ou o pensamento que me está a bater à porta.

 Clementina Sousa                                                

 

O universo

Deus formou o universo, o céu e a terra,

Tudo que era belo, para podermos usufruir,

 Também criou o homem,

 Com o seu instinto de ganancia logo pensou em destruir.

O homem constrói e destrói riquezas,

Até se enche de glória, mas coitado anda distraído,

Nem repara naquele que a seu lado chora,

Uns choram porque não tem saúde, outros porque não tem ninguém,

Outros porque não têm pão, e alguns porque nada tem.

Também há os que choram porque arranjaram sarilhos,

Mas, mais grave é aquele que chora porque não tem que dar de comer aos filhos.

Homem poderoso! Olha bem em frente naquele monte!

Verás que brota de lá uma fonte de água cristalina e corrente,

Verga-te e bebe, porque o orgulho em nada faz sentido,

Assim serás feliz! Deixa de andar distraído.

Clementina de Sousa

 

Palavras

 Palavras que eu não consigo dizer,

Que são abafadas pelo silêncio,

Não sei dizer por palavras

Tudo aquilo que penso.

  Umas sem nexo, como quem chora ou canta,

Mas elas teimam em não sair da garganta,

As palavras são como um animal

         Que foge da manada e fica perdido,

Também elas, se não forem bem articuladas,

Perdem todo o sentido.

 Palavras de dor que se transformam em amor,

Nelas há uma mistura de raiva e de ternura,

Umas não saem do pensamento, outras voam como o vento,

Mesmo que eu chore ou cante,

Teimosamente, elas não saem da garganta.

Clementina Sousa

 

                           Poema da vida

Eu sei que a vida é bela,

Desde o nascer ao sol-pôr,

Mas vista pela janela,

Ela tem muito mais valor.

Com três anos apenas,

Sem saber das dificuldades,

Fui levada para servir,

Na antiga Adega dos Frades.

Trabalhei por vales e montes,

Mas nunca tive sozinha,

Se um dia tinha pouco,

No outro nada tinha.

A vida é como um cristal

Que brilha no fundo do mar,

Todos o vêm, e afinal,

Só alguns o conseguem agarrar.

Avida dá-nos beleza,

Também nos dá dissabores,

Casei e tive filhos,

Que são os meus grandes amores,

Porque nas horas mais difíceis

Dão-me carinho e afetos,

Também me sinto feliz, por me terem dado onze netos.

Os caminhos que trilhei na vida

E os que terei de trilhar,

Nem sempre aproveitei

O que de bom a vida tinha para me dar.

As palavras que descrevo,

Têm amarguras, alegrias e verdade,

Porque eu tive sempre com a vida

Uma grande cumplicidade.

Hoje com os cabelos brancos,

Eu digo com emoção

Todos os dias tiro da vida

Uma grade lição.

Mas afinal quem eu sou?

Alguém que nunca brincou

Nem foi à escola,

Alguém que nunca agarrou

Por entre as mãos um livro,

Nem um lanche dentro da sacola.

Mas por tudo que vivi,

Também tive um pouco de ilusão,

Quando eu adormecer e não acordar

Eu sei que irei levar

Tudo isto no meu coração.

De uma coisa eu tenho a certeza,

E até digo com graça,

Tenho orgulho de ser portuguesa

E ser do concelho de Alcobaça.

 

Clementina Sousa

 

                                                    As flores

Estava eu a olhar um ramo de flores

Reparei como todas são belas,

De todas as cores

Orquídeas, rosas, malmequeres e até as mais singelas.

Em todo lado ficam bem,

Em vasos, em jardim ou canteiros,

Quantas vezes, elas são mais bonitas

Quando são criadas no meio dos espinheiros.

Estão bem em casas ricas e nas de mais pobreza,

Companheiras de momentos de alegria e também nos de maior tristeza.

Flores, flores com tanto encanto e beleza,

É o adorno principal de uma noiva e o de grandes salões da nobreza.

De tudo bonito que eu vejo, faço um resumo para finalizar

Elas ficam bem nas igrejas e nos bonitos altares.

Deus fez tudo tão lindo e com tanta pureza,

Até parece ouvi-las cantar um hino à Mãe Natureza.

                       Clementina Sousa

 Um dia a Clementina for ver tocar uns jovens músicos dos quais um era seu neto, 

ao chegar a casa escreveu assim.

A música

A música é como a rosa- dos- ventos,

Que caminha na rota dos sete mares,

E que dá a volta ao mundo,

Tem sentimentos profundos,

E não há quem a faça parar.

A música dá- me alegria,

Há nela uma magia

Que parece vinda do infinito,

Quando é bem tocada não há nada mais bonito.

Sejam adultos ou crianças, hão -de ver que da vossa infância nunca se irão esquecer,

Ficará uma semente que pela vida fora irá prevalecer.

Quero deixar o meu obrigado do fundo do coração,

Por aquilo que acabei de ver,

O vosso trabalho não foi em vão.

Quero, também, deixar um abraço sincero e de verdade,

Desejando para a vossa vida

Muitas e muitas felicidades

 

Clementina Sousa

 


A minha ida ao Xime

A minha ida ao Xime

Estava a minha companhia há pouco tempo em Mansambo, a Cart 3493, quando foi chamada a participar numa operação que teve lugar na zona do Xime, creio que com dois grupos de combate, calhou-me a mim ser um dos condutores que conduziu uma das viaturas que transportou o pessoal. Nesse dia, era já tarde quando lá chegamos, ficamos junto às instalações do Xime o regresso foi ao fim da tarde dia seguinte, durante a noite eu dormi ”no hotel estrela” junto a um pavilhão.

No outro dia, enquanto os meus camaradas andaram no mato aproveitei o tempo para conhecer um pouco da tabanca, encontrei lá um camarada que tinha conhecido na Figueira da Foz que era quase meu vizinho mas que antes eu não conhecia, era apontador de obus 10,5 fui com ele estávamos a ver um local junto a umas bananeiras onde funcionava a escola segundo ele me disse, mas aí a visita foi interrompida, ouviram-se rebentamentos na zona onde estava a decorrer a operação e o Nogueira desatou em grande correria para junto do obus.

Durante algum tempo enquanto decorria a operação a área foi sobrevoada por uma DO, como as coisas mudaram, ainda não se ouvia falar nos Strela. Também tive oportunidade de ver os fiat bombardear relativamente perto da estrada Xime Bambadinca, aí as coisas também mudaram muito, nesse dia” picaram” quase até chegar à copa das árvores, mais tarde já em Cobumba vi-os bombardear mas a uma altura que nada tinha a ver com o que o que aconteceu no Xime.

Tive também oportunidade de ir até à ponte onde estava pessoal a fazer segurança, depois aproveitei a boleia e fui com três camaradas do Xime até ao cais onde pude ver o movimento que ali havia e também um enorme buraco que tinha sido feito pelo rebentamento de um foguetão, arma de que eu ainda não tinha ouvido falar, mas aí as coisas complicaram-se a viatura que nos tinha levado enquanto nós estávamos a olhar o geba abalou e deixou-nos lá, alguns dos que tinham ido comigo não gostamos de lá ter ficado mas fazia parte do grupo um colega sempre bem- disposto, sempre a rir, vendo que alguns ficamos algo perturbados e continuando a rir disse, não há problema se for preciso até se mija-se na cama e diz-se à mulher que estamos a transpirar. Disseram-me depois que ele era sempre assim, bem- disposto, até lhe chamavam o cavalo que ri.

Em Mansambo viajamos muito, mas tal não significa que corrêssemos mais riscos, durante treze meses apenas uma das nossas viaturas acionou uma mina, em Cobumba tínhamos cerca de um quilómetro para percorrer levamos quatro viaturas acionaram uma cada…

Quando eramos periquitos gostava-mos de saber mais, ver o que até há pouco tempo era para a maioria de nós desconhecido mesmo tendo ouvido falar daquelas paragens a camaradas que antes por lá tinham passado. Talvez por isso tenha ficado gravado na nossa memória que mesmo a esta distância no tempo continua a estar bem presente.

 

António EJ Ferreira


O dia mais triste do meu tempo de Guiné

Quando “tropeçamos” no passado mesmo que tal tenha acontecido há já muito tempo a mente leva-nos a viver situações que podem ser boas ou más, mas não há como fugir. Foi o que aconteceu comigo há dias ao ler um dos postes publicado no blogue Luís Graça e camaradas da Guiné sobre a construção das instalações de Mansambo onde eu estive treze meses.

canarioCheguei aquele local uns dias mais tarde que a minha companhia, e no dia que os “velhinhos” nos deixaram fiz o meu primeiro serviço, acompanhado pela G3 que era para mim quase desconhecida, fui um dos que foram fazer segurança ao pessoal que andava a transportar a água para as nossas instalações, chuveiros, cozinha e abrigos. Eramos oito os homens da companhia incluindo o motorista do unimog e o ajudante, mais os picadores que eram três. A distância entre as nossas instalações e fonte era de poucas centenas de metros mas pela manhã o trajeto era sempre picado para que o unimog 411 e acompanhantes pudessem passar em” segurança” não fosse estar por lá alguma mina colocada durante a noite.

Quando lá chegamos fomo-nos distribuindo para junto de algumas das árvores que lá existiam, só regressamos às instalações próximo da hora de almoço. Foi à sombra de uma de maior porte que me “instalei”. Enquanto lá estivemos não me lembro de ter falado com algum dos camaradas ali em serviço mas sei que o cérebro não parou de pensar, em quase tudo, só que em nada de bom.

Ver os velhinhos partir com a alegria natural de quem conseguiu chegar ao fim da comissão e vai regressar a casa, e pensar no tempo que nos faltava para que também nós pudéssemos viver um dia assim… na altura, falava-se que seria vinte e dois meses depois foram quase vinte e sete. Preparação para a guerra na Metrópole eu não tive, apenas tinha utilizado a arma duas vezes onde disparei cinco tiros de uma vez e vinte de outra.

A minha recruta e a especialidade foi feita em apenas três meses, No Trem Auto, dos quais três semanas foram passadas no hospital, HMDIC em Lisboa, depois oito meses no RAP3 Figueira da Foz com a especialidade de monitor auto. De guerra e armas nada conhecia, daí a minha falta de preparação, tive que me habituar à situação que todos vivemos, mas fui sempre um fraco guerreiro. Era já perto de meio- dia quando regressamos da fonte, estava psicologicamente arrasado, foi então que antes do regresso me ocorreu uma frase que escrevi num papel que tinha comigo e que me acompanhou durante todo o tempo de comissão simplesmente dizia: tem calma, ainda és jovem e o tempo ade passar. Foram várias as vezes que li essa frase assim como outras que entretanto fui escrevendo. Algumas vezes ajudou mesmo… Mas aquele dia foi de todos o mais triste… ainda hoje está presente na minha mente como se fosse ontem. Mais tarde em Cobumba passei por momentos bastante mais difíceis, mas aí, a tristeza não raramente passou a dar lugar à raiva…

António EJ Ferreira.

 

 

 

 

 


As luzes que se viam da serra

Naquele dia, manhã cedo, o Pedro deixou a aldeia e guiou o rebanho até à serra, como fazia todos os dias, quando lá chegou estava muito frio, o sol ainda se não via, olhou em direção à vila sede do concelho e estranhamente viu muitas luzes eram brancas, azuis, amarelas, verdes, um sem fim de cores. Depois de muito pensar o que seria que por lá estaria a acontecer, respirou fundo e disse para consigo. Com tantas luzes e de tantas cores, só pode ser feira! E logo imaginou que não faltariam por lá os carrosséis, os carrinhos de choque, o circo, a barraca das farturas e tantas coisas bonitas, que raramente podia ver. Nesse mesmo instante decidiu. Na amanhã do dia seguinte depois de levar as ovelhas a pastar à serra também ele havia de ir à feira. E assim fez, no dia seguinte chegou a casa “arranjou-se” e pôs-se a caminho, por veredas e atalhos depressa chegou à vila, as luzes cada vez pareciam mais, mas não encontrava o largo da feira  continuou procurando, só que, depois da caminhada que fizera e de tanto procurar começava a sentir algum cansaço. Aquilo que imaginara ir ver não encontrava. Apenas via muitas pessoas numa correria louca, carregadas de sacos de plástico e de vários embrulhos, e a feira ele não encontrava.

Aproximou-se duma velhinha e perguntou: senhora pode informar-me onde fica o local da feira? A velhinha sorriu e disse—, olha menino, de facto parece uma feira mas não é! Começa hoje a época de natal aqui na vila e a Câmara Municipal mandou iluminar as ruas para ficarem mais bonitas e para que mais gente venha até cá, e assim, os comerciantes possam fazer mais negócio.

O Pedro agradeceu à velhinha a informação prestada, cansado, triste e desiludido voltou à sua aldeia. Era tempo de natal, mas apesar de muito caminhar coisas que lhe fizessem lembrar essa época ele não encontrara. O presépio como sempre havia na sua aldeia ou a pequena árvore de natal não vira em nenhum lado. Desejava contar à mãe, viúva há já alguns anos a desilusão que tinha sido a sua ida à vila. Mas também não pôde porque ela se encontrava doente, internada no hospital de uma cidade distante. No regresso a casa pensou… como é lindo o natal na minha aldeia! Onde o menino Jesus é o centro da festa, e as crianças, mesmo as que não recebem prendas conseguem ser felizes.

António  EJ Ferreira

 


Acontecimentos que a memória conserva

canarioQuando cheguei à então província Portuguesa da Guiné, a primeira vez que fui comer ao refeitório nos adidos em Bissau fui confrontado com algo estranho que eu não imaginava que por lá acontecesse, vários jovens africanos não sei se tropa ou milícia, talvez à espera de transporte para o interior, estavam fora do edifício junto às paredes com latas que tinham sido de coca-cola, leite, fruta ou outras, sem tampa de um dos lados que era tirada roçando num local rijo para que a parte perfurada caísse, que colocavam nas aberturas que existiam nos blocos de cimento com que eram construídas as paredes dos pavilhões, para que lá de dentro alguém lhe colocassem restos de comida, se algumas vezes era comida normal… outras levava à mistura espinhas e ossos mas que eles não rejeitavam.

Passado um mês de estar em Bissau fiz a viagem num Dacota até Bafatá e depois em coluna até Bambadinca, onde estive algumas horas à espera de transporte para Mansambo, durante o tempo que lá estive tudo aquilo era para mim um mundo novo, tudo diferente, desconhecido e tão estranho que certamente passei o tempo a olhar em todas as direções. Recordo-me de estar sentado naquele espaço que circundava os pavilhões, onde estavam também algumas mulheres da população, não sei porque estavam ali, talvez à espera de transporte para outra tabanca, estavam quase todas com crianças às costas uma estava a comer uma oleaginosa, coisa que eu desconhecia, olhou para mim já só tinha uma partiu-a em duas com os dentes, depois disse-me qualquer coisa que eu não entendi, e deu-me metade que mesmo sem saber o que era aceitei e comi.

Certo dia fomos fazer segurança, não sei a quem, ainda eramos periquitos, algures entre Bafatá e nova Lamego, quando chegamos à tabanca onde fomos “dormir” era já noite e ninguém tinha água, alguém da população trouxe um alguidar grande cheio, a sede era tanta em que bebemos diretamente no alguidar como se fossemos uma manada de animais…

Em Mansambo prometi ao Serifo o faxina dos condutores, de que eu fazia parte, quando vim de férias à metrópole que lhe levava uns sapatos novos, quando regressei o Serifo já não era o nosso faxina, mandei-o chamar à tabanca e dei-lhe os sapatos, no dia seguinte apareceu lá no nosso abrigo na companhia de vários meninos com os sapatos calçados todos eles exteriorizando uma alegria contagiante com uma galinha que me ofereceu.

Muitos anos já passaram mas jamais esqueci o gesto de solidariedade da senhora que me ofereceu metade da oleaginosa, talvez apercebendo-se de que eu estava completamente perdido…tentando amenizar aquele sofrimento que seria por demais evidente, para quem tinha deixado no hospital a esposa e o filho com poucas horas de nascido e tinha partido para a guerra. A galinha do Serifo e alegria daqueles meninos, ou aquela gente para quem o resto de comida era importante. Nos momentos difíceis com que tenho sido confrontado ao longo da vida, que não tem sido poucos, por estranho que possa parecer, não raramente são estas e outras memórias de situações que lá vivi onde vou buscar muita da força necessária para os enfrentar.

António EJ Ferreira.


Resposta a um comentário

 

A propósito de um comentário ao poste, porque continuo a falar da guerra da então província da Guine, em que me era pedido para esclarecer melhor o que se tinha passado para que os nossos feridos naquela tarde estivessem em Cobumba à espera do heli para serem evacuados e ele não apareceu, o que aconteceu foi o seguinte: Depois do almoço, alguns camaradas nossos que pertenciam a dois plutões da nossa companhia e a uma secção de armas pesadas, que estavam instalados junto às primeiras tabancas logo a seguir ao rio cumbijã, vinham a fazer o trajeto de unimog 404 para o local onde “moravam” os outros dois grupos da companhia o comando e quase toda a formação, que ficava junto a outras tabancas a poucas centenas de metros, Já perto do arame que circundava o sítio para onde se deslocavam junto a umas casas que a nossa companhia estava a construir para a população rebentou uma mina anti – carro, de que resultaram quatro feridos a precisar de ser evacuados.

viatura Cobumba ferido grave o piriquito

A viatura que acionou a mina que provocou os feridos que esperaram toda a tarde pelo heli que não chegou a vir.

Feito o pedido de evacuação, como era normal, fomos informados que a mesma ia ter lugar, os feridos foram levados e colocados em macas no local onde os helicópteros costumavam aterrar, isto por volta das duas da tarde, o tempo foi passando e o barulho do heli que todos esperávamos, não se fez ouvir, já quase noite, recebemos ordens para levar os feridos para Cufar pelo rio Cumbijã, o que viria a acontecer, viagem que para além do nosso pessoal em três sintex que tínhamos na companhia contou com o reforço dos fuzileiros que estavam no Chugué, não muito longe de Cobumba. Já noite chegou a Cufar um Noratlas para fazer a evacuação.

Dos feridos alguns voltaram à companhia, mas pelo menos um ficou tão mal tratado que não mais voltou, não sei o que o futuro lhe terá reservado… chamávamos- lhe o periquito, tinha uns meses a menos que nós na companhia, mas poucos, camarada sempre bem- disposto gostava de dizer que era o Trinitá Cowboy insolente.

Perguntava o ex. militar que também tinha estado na Guiné uns anos mais cedo qual a razão para que aquilo tenha acontecido, a não evacuação com era costume, tal situação ficou a dever-se aos dias de grande confusão que a nossa força aérea estava a viver, com o aparecimento dos misseis Strela que até então eram desconhecidos, pelo menos para muitos de nós que em tal nunca tínhamos ouvido falar. Foram muitos os dias difíceis que vivemos naquele local, Cobumba, mas aquele foi o que mais impacto negativo teve. Para além dos feridos e da sua não evacuação como era normal, do ponto de vista psicológico foi arrasador, o que nos levava a perguntar a nós próprios, mas onde é que nós chegamos se já não podemos contar com uma evacuação se tal for necessário …

Durante algum tempo não tivemos abastecimento de frescos… por helicóptero como algumas vezes acontecia. Nesse período ouve um dia em que uma das refeições foi arroz com marmelada…

Passado aquele tempo de maior confusão as evacuações voltaram a ser feitas no local dentro do tempo normal. Tivemos mais uma em que três camaradas nossos foram evacuados, dois viriam a falecer mas não por falta de apoio em termos de evacuação. A guerra na Guiné com o passar dos anos, sobretudo com a introdução dos Strela, sofreu uma alteração radical, o que leva alguns camaradas que por lá passaram antes de tal acontecer a ter alguma dificuldade em entender como tudo mudou desde o seu tempo. Mas é certo que mudou e muito! Para além dos terríveis misseis, quase todo o armamento do IN era melhor que o nosso, possuíam um c/sr que quando se ouvia a saída o rebentamento já estava a acontecer, nós tínhamos dois na companhia que depois de lançarem algumas granadas ficavam logo a necessitar de reparação, eles tinham o RPG, nós tínhamos a Bazuca arma completamente ultrapassada, apenas dois exemplos.

Um dos motivos para que as coisas se tornassem tão complicadas naquele sítio, como noutros, foi, enquanto alguns locais foram abandonados pelas nossas tropas, outros muito difíceis vieram a ser ocupados, aquele calhou-nos a nós. Era um local onde homens novos alguns dias não se viam por lá, e quando estavam com o aproximar da noite abalavam… As pessoas mais velhas estavam sempre por ali, alguns tinham estado ao serviço do PAIGC, como carregadores de material de guerra, recordo-me do Miranda que dizia, algumas vezes ter ir até ao Xitole levar material, havia várias crianças, o filho do chefe da tabanca andava na escola do PAIGC em Pericuto povoação próximo de nós, não sei qual seria a frequência de alunos.

Os mais velhos que estavam na tabanca passavam muitos dias próximo de um abrigo, debaixo de um mangueiro, que já lá existia quando da nossa chegada àquele local, situação que nos servia de aviso daquilo que estaria previsto acontecer, se algumas vezes nada acontecia outras a confirmação aparecia sem escolher horário…

 

António EJ Ferreira.

 

 

 


Onde a falta de vocação mais se faz sentir

Se a falta de vocação faz toda a diferença para quem exerce qualquer profissão, existem duas onde ela mais se faz sentir. Todos nós, ao longo da vida, uns mais atentos outros menos, somos confrontados com pessoas a exercer determinados serviços para os quais é bem visível não terem vocação. Dirão alguns mas isso é normal! Claro que é! Se forem trabalhadores de uma qualquer empresa cabe aos gerentes saber se os devem manter ou não. Se trabalharem por sua conta serão os próprios a sofrer as consequências dessa falta. Até aí tudo normal, mas existem situações em que as coisas não funcionam assim.

As duas classes a que me refiro e, onde em meu entender tal não devia acontecer são as classes médicas e de enfermagem. Depois do décimo segundo ano basta possuírem os valores que tornam possível o acesso a essas carreiras, tal facilitismo, por vezes, acarreta consequências que mais tarde se fazem sentir com prejuízo na maioria dos casos para o serviço nacional de saúde e, sobretudo para os doentes que se sentem impotentes quando confrontados com tal situação em que o transtorno emocional provocado chega a ser de tal ordem que só quem alguma vez o viveu sabe o que custa…

Se, são uma minoria os profissionais que exercem estas profissões para as quais não tem vocação, talvez fosse fácil de resolver se, para tal, mesmo possuindo os valores que dão acesso a essas carreiras fossem sujeitos a um teste de vocação. Será difícil de implementar talvez! Mas todos teriam a ganhar, mesmo alguns a quem o acesso fosse vetado, como pessoas inteligentes que são, certamente escolheriam outra área onde pudessem vir fazer aquilo para que tem vocação, e quem faz o que gosta na vida esta torna-se sempre mais fácil.

Sou possuidor de algumas doenças crónicas entre elas a asma que já me faz companhia há cerca de trinta e cinco anos, o que me leva a quando o inverno chega, normalmente, tenha de recorrer ao hospital, durante todos estes anos, algumas vezes, tenho sido confrontado com situações difíceis, que me escuso a relatar pois seria lembrar momentos de sofrimento, talvez por isso este meu reparo na tal falta de vocação, de alguns médicos.

António EJ Ferreira

 


Porque vou falando do meu tempo de Guiné?

Quando a minha companhia esteve em Mansambo três dos nossos camaradas ficaram cada um sem um pé, vítimas de rebentamento de minas,  se for dito agora leva alguns a dizer ainda tiveram sorte ficarem só sem um pé, como se alguém com vinte e poucos anos que foi obrigado a deixar tudo e todos e ir para a guerra tivesse sorte em ficar apenas com um pé. Mas já ouvi… Ou quando dois camaradas nossos em Cobumba morreram vítimas de uma mina levantada pelos nossos homens que viria a rebentar na nossa arrecadação, ou ainda, num dos dias mais desmoralizadores que vivemos em todo o tempo de comissão, em Cobumba quando quatro feridos estiveram várias horas esperando que o heli chegasse para fazer a evacuação para Bissau e o heli não chegou… mais tarde, com o tempo de comissão já terminado há muito, outro camarada viria a falecer já na cidade.

Quando alguém tenta explicar porque é que isso aconteceu, são alguns dos próprios que viveram essas situações que acham que isso é perder tempo, dizendo, são coisas que já não interessam. Pois não é esse o meu entendimento. Dar a conhecer o passado, neste caso o que vivemos na guerra, é sempre interessante. Se mais não for, para que aqueles que vierem depois de nós saibam o que nesse tempo aconteceu e porque aconteceu e, se possível, contribuírem para que tal não volte a acontecer… Se esse passado não for dado a conhecer aos mais novos que nasceram no tempo em que não é obrigatório ir à tropa, que aos cinco ou seis anos já usam o telemóvel e alguns até já mexem na Internet, que antes de nascerem os pais já tem um cuidado especial com eles. A resposta deles provavelmente seria, mas que atrasados que eles eram.

Não é novidade para ninguém, ou não deveria ser, que é muito importante arrumar o nosso passado, mas isso não implica esquecer. Sabendo de onde vimos, se mais não for, é sempre mais fácil decidir para onde queremos ir…

Tudo tem um tempo para acontecer. Havia um homem que andou cerca de três anos a colocar degraus para subir a um ponto muito alto onde ninguém antes tinha conseguido subir, faltava pouco para atingir o cimo, um dia, a morte chegou e não conseguiu aquilo porque tanto tinha lutado… Outro continuou o trabalho que há anos ele tinha começado, passados poucos dias chegou ao cimo, nesse dia fizeram uma grande festa e o seu nome ficou gravado para que todos soubessem quem foi o primeiro a chegar àquele sítio. Lamentavelmente esqueceram, que aquele só lá chegou porque outro durante muito tempo trabalhou para que isso fosse possível…

Por tudo isso é bom continuar a haver quem se preocupe em dar a conhecer o nosso passado, neste caso na guerra, sempre com o rigor possível, para que aqueles que vieram depois de nós possam saber as dificuldades porque passamos, se mais não fosse, só a ausência de familiares e amigos durante muitos meses, alguns mais de dois anos naquela que devia e podia ter sido a melhor fase da nossa vida…

Viver num clima de guerra só por si era terrível, mas a esmagadora maioria dos que passaram pela Guiné teve que conviver com o sofrimento de camaradas feridos, quer em combate, vítimas de flagelações á distância ou das terríveis minas em que ficaram marcados para sempre. Outros, não resistiram ao sofrimento e mesmo ali a nosso lado acabaram por perder a vida.

Quando se fala nas migrações como está a acontecer nesta altura faz-me lembrara uma frase que disse a alguns amigos quando cheguei da Guiné: se um dia houver guerra em Portugal só se não puder é que não abalo com a minha família para um país onde exista paz…

Creio, que se o sofrimento que advém da guerra a todos por igual chegasse não haveria na terra homem que em guerra pensasse.

António EJ Ferreira